Dietas restritivas e os transtornos alimentares
- Carol Avileis
- 6 de jul. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 7 de jul. de 2020
Por que temos compulsão alimentar? Por que sentimos essa compulsão desenfreada de comer, de forma descontrolada, como se fosse uma necessidade absoluta para viver?

A primeira compulsão alimentar
O primeiro episódio de compulsão alimentar se dá, praticamente em todos os casos, devido à uma restrição na dieta, ou a uma dieta restritiva. E a maioria dos casos iniciais de compulsão alimentar, que precederam ou não a bulimia, se dá na idade adolescente ou de jovens adultos. Nem todo adolescente desenvolve um transtorno alimentar depois de uma dieta restritiva, mas todo adolescente que desenvolve um transtorno alimentar, o desenvolveu depois de uma dieta restritiva.
Lógico, existem outros fatores envolvidos. Mas, apesar de existirem fatores (ainda não compreendidos na sua maioria), que envolvem genética, fatores biológicos, influência do meio social, características de personalidade e ambiente familiar, que aumentam o risco de desenvolvimento de transtornos alimentares, eles não se desenvolvem sem um histórico de dietas restritivas. Bulimia, compulsão alimentar e anorexia nervosas são as mais comuns.
Sem uma dieta restritiva, não haveria o desenvolvimento de um impulso para a compulsão alimentar, que por sua vez evitaria o desenvolvimento sucessivo de bulimia, por exemplo. Quando ocorre a restrição de quantidade de alimentos, diminuição calórica ou exclusão de grupos inteiros de alimentos, ocorre um impacto no cérebro. Apesar de, depois de algumas semanas de dieta restritiva, as pessoas reportarem que estão se sentindo muito melhor com elas mesmas com a perda rápida de peso, ficando mais autoconfiantes e felizes com os resultados, o cérebro delas está, nos bastidores, recebendo avisos de perigo eminente. Por isso, o pensamento obsessivo sobre comida começa a se formar, e a pessoa começa a pensar em comida constantemente, acordando e indo dormir, e todo o intervalo entre esses eventos, pensando em comida. Antes de iniciar a dieta, a comida simplesmente não era um assunto que merecesse tanta atenção na vida da pessoa. Depois de um período em dieta restritiva, o sentimento de fome, desejos por determinados tipos de comida (especialmente os "proibidos") e a vontade de comer em grandes quantidades, que antes seriam anormais para a mesma pessoa, começam a aparecer de forma constante.
A pior idade pra fazer uma dieta

Esses fatores são mais influentes ainda se essas restrições acontecem inicialmente na adolescência ou idade adulta. Isso porque nessa idade o cérebro está muito mais sensível a qualquer restrição alimentar, já que necessita de muita energia no seu desenvolvimento. Dessa forma, nessa idade especialmente, o sistema de sobrevivência do adolescente ou jovem adulto (provavelmente no hipotálamo) é ativado pela restrição calórica. Impulsos para a compulsão alimentar e desejos insaciáveis por alimentos hiper palatáveis (com bastante sal, açúcar, gordura e condimentos) começam a aparecer.

Assim, inicialmente, a compulsão alimentar surge como uma reação natural e saudável do cérebro ao estímulo da restrição de energia ingerida, e a compulsão alimentar surge como uma reação adaptativa do cérebro à restrição de comida.

Isso pode ser visto mesmo em adultos, de forma bastante interessante, em atletas fisioculturistas. Poucas semanas antes de competições, eles restringem de forma importante a quantidade de sal, água e calorias ingeridas, para que a gordura corporal subcutânea seja trazida ao mínimo possível, deixando sua forma muscular aparecendo. A ansiedade causada pela extrema restrição alimentar é bastante reportada por esses atletas. Ao sair da competição, eles tem verdadeiros episódios de compulsão alimentar, onde ingerem uma quantidade imensa de alimentos e calorias, além de escolherem preferencialmente alimentos hiper palatáveis, como forma de amenizar essa ansiedade causada por seu sistema de sobrevivência durante tantos dias. Esse episódio de compulsão alimentar puramente biológico é tão comum, que é um ritual entre esses atletas. Esse tipo de compulsão alimentar, provocada por esse mecanismo biológico de sobrevivência, é comum entre pessoas que sofreram uma restrição alimentar muito grande (soldados em batalha, ou pessoas em condições miseráveis, prisioneiros de guerra, etc.), mesmo aquelas que não sofrem e não virão a sofrer transtornos alimentares. O mesmo comportamento foi observado em ratos após serem submetidos a restrições calóricas por um determinado período de tempo.

Instintos de sobrevivência no cérebro
Os primeiros episódios de compulsão alimentar são o resultado, então, de instintos de sobrevivência. Esses instintos de sobrevivência são nossas tendências herdadas para se comportar de formas que maximizem nossas chances de sobrevivência. Elas são respostas biológicas automáticas, primitivas, e comumente muito poderosas, emitidas quando nossas necessidades biológicas básicas não são atendidas. Quando nosso cérebro percebe uma ameaça à nossa sobrevivência, ele reage automaticamente, nos levando a tomar ações de proteção da nossa vida.
O cérebro a que me refiro aqui, são as estruturas primitivas, espalhadas por diversos lugares do cérebro, mas em especial pelo hipotálamo, nosso centro controlador da homeostase. Ele atua de forma automática e involuntária. Essas estruturas do cérebro nos dirigem de forma a nos comportarmos instintivamente, e nesse tipo de comportamentos nos assemelhamos muito com os animais. Sua função e papel no comportamento alimentar, em especial nos comportamentos de compulsão alimentar, é de extrema importância.

O cérebro que chamarei aqui de animal, só para facilitar a identificação já explicada anteriormente (não é um termo técnico neurocientífico), entende a limitação de ingestão de alimentos e calorias como uma ameaça à sobrevivência da pessoa. Naturalmente, e de forma muito poderosa, ele começa a proteger o corpo da ameaça de inanição. É importante entender que, mesmo que a dieta não seja severamente restritiva, e que não haja o risco de inanição, fazer dietas ainda é contra a nossa natureza, e esse cérebro animal irá se manifestar quanto a isso.
Nosso corpo e cérebro muda para o modo de sobrevivência, quando a alimentação fica restrita ou o corpo é privado do que precisa para seu bom funcionamento e manutenção da homeostase. Homeostase é capacidade do organismo de apresentar uma situação físico-química característica e constante, dentro de determinados limites, mesmo diante de alterações impostas pelo meio ambiente, e é regulado primariamente pelo hipotálamo.
A primeira coisa que acontece, é que o metabolismo desacelera, para que ele possa ser energeticamente o mais econômico possível, e utilize as calorias, que estão escassas, da forma mais eficiente possível possível.
Outra coisa que muda, são os balanços entre os hormônios da fome e saciedade. Agora, toda a energia do nosso organismo está dedicada a nos convencer (biologicamente) a comer. Se estivéssemos no tempo das cavernas, ou de nômades, iríamos ficar com os ouvidos e os narizes aguçados para encontrar uma caça ou uma planta comestível para suprir essa baixa de energia. O mais interessante, e ainda não completamente compreendido pela neurociência, é que o hipotálamo tem complexas redes neurais que se estendem por outras partes do cérebro e controlam delicados balanços hormonais (sistema endócrino), indo desde o controle da produção de estrógenos, até os hormônios responsáveis pela fome e saciedade, regulação da temperatura corporal, pressão sanguínea, composição eletrolítica, entre outras muitas funções. Sua influência se estende inclusive para os comportamentos instintivos ou inatos e as emoções, que são outro aspecto importante para nossa sobrevivência.
O cérebro não é tão simples assim...
Se existisse uma área específica que controlasse o apetite, e portanto o impulso da compulsão alimentar, ou um neurotransmissor único que regulasse o apetite, isso tornaria mais fácil de se desenvolver um medicamento que diminuísse a produção da fome ou a estimulasse nos casos severos de anorexia. Mas não existe um único hormônio responsável pela fome e saciedade, nem um único lugar no cérebro capaz de regular a fome. Todo o sistema regulador da fome é bastante complexo, e tentar explicar isso de forma simplista seria ir além do que é atualmente conhecido na neurociência. O cérebro mesmo, e sua relação com os transtornos alimentares, ainda está longe de ser completamente explorado e conhecido. Vamos estudar mais sobre isso nos próximos posts.

Entretanto, o fato de não compreendermos completamente nem o cérebro, nem sua relação com os comportamentos alimentares, não nos impede de trabalharmos para encontrar soluções, nem propor tratamentos relacionados a transtornos alimentares.
A primeira coisa que você precisa entender é que não deve se submeter a dietas restritivas, principalmente se você sofre de transtornos alimentares. Exercícios físicos pensados exclusivamente para emagrecer também devem ser evitados. Procure algo que te faça bem, que você tenha prazer, como uma forma de dedicar tempo para você. Aí sim, as áreas de prazer do cérebro serão ativadas. Se você entrar em dietas restritivas e exercícios físicos extenuantes para perda de peso, seu hipotálamo irá novamente disparar os sinais de busca da sobrevivência, que causaram todo esse ciclo vicioso lá atrás.
Tem tratamento?

O tratamento pode ser feito de forma independe (sozinha) ou com um psicoterapeuta especializado. O tratamento com melhores resultados no longo prazo usa a abordagem comportamental em associação à Gestalt. Mas cada caso deve ter um tratamento individualizado, sem usar protocolos.
O transtorno alimentar é complexo porque poucos profissionais estão realmente preparados para atendê-lo. Isso gera muita frustração... Mas a boa notícia é que a terapia é sim breve, e em pouco tempo você consegue ver alterações no seu comportamento, diminuindo muito os padrões de sofrimento. Perder peso não deve ser a prioridade.

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