Dieta e plano alimentar: aliados ou gatilhos para compulsão alimentar?
- Carol Avileis
- 19 de nov. de 2021
- 5 min de leitura
Já arrumei confusão por causa do que vou escrever nesse post, já aviso. Se prepara! A primeira coisa que quero deixar claro é que trabalho com interdisciplinaridade com diversos profissionais, inclusive nutricionistas. Então, se você é nutricionista e está lendo esse blog: calma! Não estou atacando sua profissão, mas sim trazendo um alerta sobre o que algumas ferramentas utilizadas na nutrição causam em quem tem um transtorno alimentar. Esse post vai se concentrar na discussão sob o ponto de vista do transtorno de compulsão alimentar periódica, mas poderia facilmente ser extrapolado para anorexia e bulimia.

A pessoa que sofre com crises de compulsão alimentar tem como característica intrínseca da doença o foco na comida e no peso. Esse é o dado mais importante que iremos considerar aqui. E esse dado é baseado na própria descrição da doença no manual psiquiátrico americano (DSM-5):
Os critérios clínicos para o diagnóstico do transtorno de compulsão alimentar requerem que:
1. A compulsão alimentar ocorra, em média, pelo menos 1 vez/semana por 3 meses
2. Os pacientes têm sensação de falta de controle em relação à alimentação
3. Além disso, pelo menos 3 dos 5 comportamentos a seguir devem estar presentes:
Comer muito mais rápido do que o normal
Comer até se sentir desconfortavelmente cheio
Comer grandes quantidades de alimento sem estar fisicamente com fome
Comer sozinho por vergonha
Sentir-se nauseado, deprimido ou culpado depois de comer excessivamente
4. Acentuada angústia relativa à compulsão alimentar
Como podemos perceber pela própria descrição da doença, o indivíduo que sofre de compulsão alimentar não come por gula, porque gosta, porque não quer parar de comer, ou porque sente prazer no comer excessivo. É uma pessoa angustiada, desconfortável, na maior parte das vezes, com dores ao comer em excesso. A pessoa que sofre de compulsão alimentar SOFRE ao comer durante as crises, com intensa sensação de falta de controle, como se ela quisesse parar de comer e não conseguisse.
Tratando a obesidade e piorando a compulsão alimentar
O impacto prático dessa descrição é extenso, mas, aparentemente, não é levada em consideração quando essa pessoa compulsiva procura ajuda em um nutricionista. É consequência da doença também o acentuado ganho de peso, causando altos valores no cálculo do seu índice de massa corporal (IMC), e enquadrando essa pessoa como obeso. A obesidade tem sido a causa raiz de diversas comorbidades graves: hipertensão arterial, diabetes tipo 2, problemas articulares e ortopédicos importantes, cardiopatias, entre outros. Por isso, o nutricionista se engaja no objetivo de ajudar esse obeso a emagrecer. O problema é que a obesidade não é a causa, mas a consequência da compulsão alimentar. E a compulsão alimentar não vai embora sozinha, sem psicoterapia e, em alguns casos, tratamento medicamentoso com médico psiquiatra especializado em transtornos alimentares.
Para ajudar o obeso a emagrecer, o nutricionista usa duas ferramentas: a dieta restritiva e o diário alimentar.
Diário Alimentar
O objetivo do diário alimentar é rastrear comportamentos, emoções e motivações ao se alimentar. Ele consiste em algo como um mapa a ser preenchido de que horas se come, o que se come, como se sente antes e depois de comer, e deve-se atribuir notas de 0 a 10 para a fome ao se comer e para a saciedade ao se parar de comer. O resultado dessa análise por alguns dias (em geral de 3 a 7 dias) gera dados que supostamente indicarão ao nutricionista horários chaves e indicará gatilhos e alimentos que causam problemas para o obeso. Baseado nessas informações, serão indicadas estratégias de substituição, por exemplo.
A ideia em si não é ruim. O problema é que a pessoa que sofre de compulsão alimentar já pensa em comer o tempo todo, e já faz planos para não comer mais, também, o tempo todo. É um constante planejamento para não ter crises de compulsão, uma angústia por ter tido, e medo e ansiedade por ter novamente. Se você perguntar para o compulsivo como ele se sente antes da refeição, a resposta será algo como: ansioso e esperançoso, medo e impulsividade. O momento da refeição é por definição um momento de estresse. Tentar dar nota para isso, e escrever como se sente, bem como escrever o que e quanto comeu, já gera mais ansiedade do que o normal para o compulsivo. Dessa forma, o processo de mapeamento aumenta a ansiedade, o estresse, a frustração e a autocrítica, levando o indivíduo a aumentar a frequência das crises de compulsão enquanto o diário alimentar é feito.
Dessa forma, não se deve indicar a realização do diário alimentar para uma pessoa que sofre de compulsão alimentar, já que a ferramenta traz informações interessantes ao profissional, mas com grande prejuízo pro paciente.
Dieta Restritiva ou Reeducação Alimentar
Sim, você leu o subtítulo corretamente: reeducação alimentar é uma dieta restritiva. Isso porque a reeducação alimentar seria realmente uma reeducação se estivesse baseada em informações, orientações e aprendizados, tirando-se dúvidas e esclarecendo-se mitos relacionados à alimentação. Ela não viria baseada em um cardápio que, mesmo que pareça contemplar tudo, fala de o quê, que horas, quanto e com que frequência se pode comer. Isso é obviamente uma restrição de graus de liberdade que o paciente tem:
Você não pode escolher o que tem vontade (apetite) para comer
Não pode comer respeitando sua fome (não tem fome não come, tem fome come)
Não pode respeitar a sua saciedade, comendo até que se sinta saciado
Dessa forma, o não pode já torna a reeducação alimentar uma dieta restritiva. Ela seria excelente pra alguém se recuperando de uma cirurgia por exemplo, mas não para alguém que já faz planos de restrição diariamente, o dia inteiro, e se culpa por nunca conseguir segui-los.
Resumindo, quando alguém que tem compulsão alimentar e faz uma dieta restritiva ou uma reeducação alimentar, não consegue seguir o cardápio (nem 20% do tempo), aumenta a frustração, o autojulgamento e a autocrítica, diminui a autoconfiança e a esperança, chegando a conclusão de "eu não tenho jeito".
O que fazer então?
O cenário é de desespero, caos e frustração. Parece que não tem solução. Mas tem sim.
Se você for nutricionista, aprenda sobre transtornos alimentares. Considere a possibilidade desse cliente ter um transtorno alimentar, faça perguntas e exclua essa possibilidade antes de continuar com o seu protocolo de atendimento. Caso esse cliente tenha um transtorno ou esteja perto de ter, encaminhe imediatamente para a psicoterapia especializada, devendo o cliente retornar somente após a alta psicoterapêutica com relação ao transtorno alimentar.
Se você é um familiar, perceba: o problema não é a obesidade. Ela é apenas a consequência natural do problema, que é a compulsão alimentar. Ela precisa ser tratada assertivamente antes de mais nada. Perceba: tratamento da compulsão alimentar não implica em perda de peso, mas sim em interrupção do processo de ganho de peso acelerado, melhora nos índices de ansiedade e no estado depressivo natural e comum nesses casos. O emagrecimento virá com o tempo, sem pressa, e sem ser indicativo de melhora do paciente.
Se você tem compulsão alimentar, saiba que ela não vai embora sozinha. Não é só uma fase, não vai passar. Não quer dizer nada sobre sua força de vontade e autocontrole, nem sobre seu valor pessoal. É um transtorno comportamental, e você precisa de ajuda pra sair dessa. Não se preocupe em um primeiro momento em perder peso, mas sim em parar comportamentos impulsivos e compulsivos. Procure psicoterapia especializada.
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